Post by ℓσвσ on Nov 23, 2008 15:23:08 GMT -3
É hábito contrapor as biografias elaboradas dos personagens de horror à frase curta em que alguns jogadores de fantasia medieval resumem seus heróis (“somos mercenários perseguindo tesouros”). Gostos à parte, o problema é o seguinte:
a) elaborar uma biografia longa ou uma curta?
b) escrever a biografia ou dizê-la para o Mestre?
c) como conseguir um personagem com motivos para se aventurar?
Estabelecendo “biografia” como o conjunto de fatos anteriores à estréia do personagem no jogo, eis minha proposta:
UMA BIOGRAFIA CURTA, ESCRITA E ABERTA ÀS CONTRIBUIÇÕES DE TODO O GRUPO DE JOGO.
1. PASSEI A CONSTRUIR PJs DA SEGUINTE MANEIRA
Segundo este método, uma biografia deve:
1) ser pensada durante toda a construção do personagem;
2) ser escrita no encerramento da construção do personagem;
3) ser lida apenas pelo Mestre e pelo jogador que controla o personagem;
4) não exaurir tudo o que aconteceu no passado do personagem;
5) justificar o estado atual do personagem;
6) conter espaços vagos;
7) deixar boa parte do passado para ser inventado durante o jogo;
8) estar aberta a contribuições do Mestre e dos outros jogadores.
1º PASSO: COMO O PERSONAGEN É AGORA?
Defina o estado atual do personagem. Bolar um conceito para ele costuma ajudar (exemplo: um conspirador de olho no trono, uma lavadeira que vai reaver a fortuna, um músico que enlouquecerá, um soldado que não consegue morrer, etc.).
Depois, pense em um problema em que o personagem esteja já imerso. Assaltou um banco, flagrou um crime, deve dinheiro, etc.
Diga também seus mais relevantes traços físicos e emocionais. Por exemplo: pouca bagagem cultural, alto, descolado e saudável.
2º PASSO: INVENTE COMO ELE CHEGOU A SEU ESTADO ATUAL
Conte apenas os fatos principais. Se ele flagrou um crime, conte qual crime, onde, quando, quem, e dê os porquês. Diga como ele se sente. Não precisa sempre falar o nome dos pais, do avô, da tia, seu brinquedo predileto, a data de nascimento, etc.
3º PASSO: CONSTRUA A FICHA DE PERSONAGEM
Use as regras de seu sistema de jogo.
4º PASSO: PASSE A LIMPO PARA O MESTRE LER
Veja o que você pensou no 1º e no 2º passo, o que inventou no 3º (pois as regras sugerem muitas coisas), e escreva o resultado final em um texto de no máximo de 30 linhas. 31 linhas ou mais significam um personagem excessivamente complexo. Sugiro inventar essa complexidade durante as aventuras.
2. UM EXEMPLO
1º) Conceito: um cara meio marginal envolvido em disputas no submundo por motivos bestas. Problema atual: tem uma cicatriz e deseja se vingar de quem o machucou.
2º) Justificativa: Ritz apanhou tanto ao sair de um boteco que ficou com o nariz torto. Que azar para ele, cujo rosto meigo seduzia rapidamente as garotas... Agora ele quer sangue! Tudo aconteceu porque Ritz conquistara uma mocinha e só mais tarde descobriu que ela era irmã do Polvilhão, o chefe da gangue que surrou Ritz.
3º) Sistema de jogo: sequer imagino qual sistema usar. Seja qual for, Ritz deverá ter força elevada (é um moço brigão) e uma aparência boa. Na hora, aproveito para adquirir algo como rendas. Aí invento mais: Ritz é filho-família, tem grana. Mas, vadio consumado, prefere ser filho da #OOPS#. Dispensa mesada, gosta de dormir na rua e farrear nos bordéis como se fosse um pobretão. Tem uma gangue. Fiquei sem pontos para uma aparência deslumbrante.
4º) Passar a limpo (o que quer dizer alterar detalhes dos passos anteriores) e entregar para o Mestre: “Ritz é um molecão de 25 anos, de família abastada. Mas nunca quis saber de condomínio. Gosta mesmo é de rua. Arranjou uma gangue para impor respeito no bairro da Paciota. E junto arranjou treta com o Polvilhão, rapagão de 26 anos que mandava lá. Os bandos brigaram e o de Ritz levou a melhor. O Polvilhão se vingou pegando-o na saída do boteco do Salô. Deram-lhe uma surra tal que seu nariz ficou torto para a esquerda. Agora Ritz quer arrebentar o Polvilhão. Mas, de sacanagem, fica dando em cima da irmã dele, uma moça que trabalha na padaria do Beleco. Para ela, ele é o Ritz que mora em condomínio e dirige um carrão. A família está contente com ele, agora que deixou de ser filho da #OOPS# e virou filho-família. Para dirigir os carros e ter dinheiro a rodo, ele finge ir à faculdade de fisioterapia à noite”.
Basta para uma boa estréia. Ritz tem motivo para assaltar, espancar, mentir, elogiar, ajudar, roubar, viajar — em suma, para se aventurar, e sua biografia tem menos de 1 folha. Passamos de um enredo de novela mexicana (Polvilhão se vingando porque Ritz deflorou sua irmãzinha...) para um enredo ordinário: Ritz e Polvilhão brigaram pelo domínio do bairro. Ritz quer se vingar porque ficou com o nariz torto. Envolveu na vingança a irmã do Polvilhão, e mente para os pais para resolver os problemas estúpidos em que se mete. A mocinha dá bola porque Ritz tem grana. Conclusão: ninguém ali vale o que come (nem os pais, que são os babacas que financiam vagabundo). O personagem tem até um estilo de aventura próprio: coisas mundanas.
O jogador até construiu partes do cenário... Durante o jogo, o jogador que controla Ritz talvez seja obrigado a dizer se ele é canhoto ou destro, o nome do pai e da mãe. Durante o jogo, talvez outros jogadores — e o Mestre — inventem pedaços da biografia dele (um jogador novo interpreta um seu primo que veio de longe, o Mestre define qual a faculdade que Ritz freqüenta; a mocinha da padaria, por exemplo, é daquelas que o Mestre desenvolverá na aventura, etc.). A composição completa da biografia acompanhará a dinâmica de jogo. E será completa quando o personagem morrer ou sair de cena, não quando todos seus detalhes forem inventados (o que, aliás, seria impossível). Se nunca, em cena alguma, alguém lhe perguntar o nome do pai, por que diabos rubros o jogador deveria ter perdido tempo com isso ao construir o personagem?
3. PALAVRAS PARA CÁ E PARA LÁ
Há três vantagens em deixar espaços biográficos vagos:
1) o jogador experimenta o prazer da invenção espontânea quando um personagem do Mestre pergunta sobre o passado do PJ;
2) os personagens se impregnam do cenário em que se passa a aventura sem que os jogadores precisem saber muito a respeito dele, pois o Mestre ganha brechas para, inventando aventuras, inventar parte do passado do personagem (isso impregna o personagem do cenário e vice-versa);
4) os personagens se constroem coletivamente.
Há um risco: a incoerência. Uma maneira de contorná-la é compor biografias curtas e, algo em que não vejo o menor problema, aceitar a incoerência como característica inevitável de um jogo espontâneo, criativo, imprevisível e coletivo.
Não vejo problema em TROCAR COERÊNCIA POR DIVERSÃO! RPG É DIVERSÃO.
a) elaborar uma biografia longa ou uma curta?
b) escrever a biografia ou dizê-la para o Mestre?
c) como conseguir um personagem com motivos para se aventurar?
Estabelecendo “biografia” como o conjunto de fatos anteriores à estréia do personagem no jogo, eis minha proposta:
UMA BIOGRAFIA CURTA, ESCRITA E ABERTA ÀS CONTRIBUIÇÕES DE TODO O GRUPO DE JOGO.
1. PASSEI A CONSTRUIR PJs DA SEGUINTE MANEIRA
Segundo este método, uma biografia deve:
1) ser pensada durante toda a construção do personagem;
2) ser escrita no encerramento da construção do personagem;
3) ser lida apenas pelo Mestre e pelo jogador que controla o personagem;
4) não exaurir tudo o que aconteceu no passado do personagem;
5) justificar o estado atual do personagem;
6) conter espaços vagos;
7) deixar boa parte do passado para ser inventado durante o jogo;
8) estar aberta a contribuições do Mestre e dos outros jogadores.
1º PASSO: COMO O PERSONAGEN É AGORA?
Defina o estado atual do personagem. Bolar um conceito para ele costuma ajudar (exemplo: um conspirador de olho no trono, uma lavadeira que vai reaver a fortuna, um músico que enlouquecerá, um soldado que não consegue morrer, etc.).
Depois, pense em um problema em que o personagem esteja já imerso. Assaltou um banco, flagrou um crime, deve dinheiro, etc.
Diga também seus mais relevantes traços físicos e emocionais. Por exemplo: pouca bagagem cultural, alto, descolado e saudável.
2º PASSO: INVENTE COMO ELE CHEGOU A SEU ESTADO ATUAL
Conte apenas os fatos principais. Se ele flagrou um crime, conte qual crime, onde, quando, quem, e dê os porquês. Diga como ele se sente. Não precisa sempre falar o nome dos pais, do avô, da tia, seu brinquedo predileto, a data de nascimento, etc.
3º PASSO: CONSTRUA A FICHA DE PERSONAGEM
Use as regras de seu sistema de jogo.
4º PASSO: PASSE A LIMPO PARA O MESTRE LER
Veja o que você pensou no 1º e no 2º passo, o que inventou no 3º (pois as regras sugerem muitas coisas), e escreva o resultado final em um texto de no máximo de 30 linhas. 31 linhas ou mais significam um personagem excessivamente complexo. Sugiro inventar essa complexidade durante as aventuras.
2. UM EXEMPLO
1º) Conceito: um cara meio marginal envolvido em disputas no submundo por motivos bestas. Problema atual: tem uma cicatriz e deseja se vingar de quem o machucou.
2º) Justificativa: Ritz apanhou tanto ao sair de um boteco que ficou com o nariz torto. Que azar para ele, cujo rosto meigo seduzia rapidamente as garotas... Agora ele quer sangue! Tudo aconteceu porque Ritz conquistara uma mocinha e só mais tarde descobriu que ela era irmã do Polvilhão, o chefe da gangue que surrou Ritz.
3º) Sistema de jogo: sequer imagino qual sistema usar. Seja qual for, Ritz deverá ter força elevada (é um moço brigão) e uma aparência boa. Na hora, aproveito para adquirir algo como rendas. Aí invento mais: Ritz é filho-família, tem grana. Mas, vadio consumado, prefere ser filho da #OOPS#. Dispensa mesada, gosta de dormir na rua e farrear nos bordéis como se fosse um pobretão. Tem uma gangue. Fiquei sem pontos para uma aparência deslumbrante.
4º) Passar a limpo (o que quer dizer alterar detalhes dos passos anteriores) e entregar para o Mestre: “Ritz é um molecão de 25 anos, de família abastada. Mas nunca quis saber de condomínio. Gosta mesmo é de rua. Arranjou uma gangue para impor respeito no bairro da Paciota. E junto arranjou treta com o Polvilhão, rapagão de 26 anos que mandava lá. Os bandos brigaram e o de Ritz levou a melhor. O Polvilhão se vingou pegando-o na saída do boteco do Salô. Deram-lhe uma surra tal que seu nariz ficou torto para a esquerda. Agora Ritz quer arrebentar o Polvilhão. Mas, de sacanagem, fica dando em cima da irmã dele, uma moça que trabalha na padaria do Beleco. Para ela, ele é o Ritz que mora em condomínio e dirige um carrão. A família está contente com ele, agora que deixou de ser filho da #OOPS# e virou filho-família. Para dirigir os carros e ter dinheiro a rodo, ele finge ir à faculdade de fisioterapia à noite”.
Basta para uma boa estréia. Ritz tem motivo para assaltar, espancar, mentir, elogiar, ajudar, roubar, viajar — em suma, para se aventurar, e sua biografia tem menos de 1 folha. Passamos de um enredo de novela mexicana (Polvilhão se vingando porque Ritz deflorou sua irmãzinha...) para um enredo ordinário: Ritz e Polvilhão brigaram pelo domínio do bairro. Ritz quer se vingar porque ficou com o nariz torto. Envolveu na vingança a irmã do Polvilhão, e mente para os pais para resolver os problemas estúpidos em que se mete. A mocinha dá bola porque Ritz tem grana. Conclusão: ninguém ali vale o que come (nem os pais, que são os babacas que financiam vagabundo). O personagem tem até um estilo de aventura próprio: coisas mundanas.
O jogador até construiu partes do cenário... Durante o jogo, o jogador que controla Ritz talvez seja obrigado a dizer se ele é canhoto ou destro, o nome do pai e da mãe. Durante o jogo, talvez outros jogadores — e o Mestre — inventem pedaços da biografia dele (um jogador novo interpreta um seu primo que veio de longe, o Mestre define qual a faculdade que Ritz freqüenta; a mocinha da padaria, por exemplo, é daquelas que o Mestre desenvolverá na aventura, etc.). A composição completa da biografia acompanhará a dinâmica de jogo. E será completa quando o personagem morrer ou sair de cena, não quando todos seus detalhes forem inventados (o que, aliás, seria impossível). Se nunca, em cena alguma, alguém lhe perguntar o nome do pai, por que diabos rubros o jogador deveria ter perdido tempo com isso ao construir o personagem?
3. PALAVRAS PARA CÁ E PARA LÁ
Há três vantagens em deixar espaços biográficos vagos:
1) o jogador experimenta o prazer da invenção espontânea quando um personagem do Mestre pergunta sobre o passado do PJ;
2) os personagens se impregnam do cenário em que se passa a aventura sem que os jogadores precisem saber muito a respeito dele, pois o Mestre ganha brechas para, inventando aventuras, inventar parte do passado do personagem (isso impregna o personagem do cenário e vice-versa);
4) os personagens se constroem coletivamente.
Há um risco: a incoerência. Uma maneira de contorná-la é compor biografias curtas e, algo em que não vejo o menor problema, aceitar a incoerência como característica inevitável de um jogo espontâneo, criativo, imprevisível e coletivo.
Não vejo problema em TROCAR COERÊNCIA POR DIVERSÃO! RPG É DIVERSÃO.
Autor: Camilo Oliveira Prado
Fonte: RedeRPG
Fonte: RedeRPG